ter
15
abr
2014

“Ela me disse que pretende fazer uma experiência com a música mediterrânea”

Otávio Sitônio Pinto*

Lula Pena passou por aqui. Foi sexta-feira, dia 12 deste abril. Apresentou-se na sede da Energisa, antiga Saelpa, a velha estação de Força e Luz de Cruz do Peixe, no velhíssimo Tambiá. Tem esse nome porque era um ponto de venda de frutos do mar, no entroncamento de caminhos que veio a se chamar Cruz do Peixe – mais tarde a usina de força e luz, movida a lenha até chegar a energia da cachoeira de Paulo Afonso, a força do Rio São Francisco transposta para todo o Nordeste Brasileiro.

Essa a verdadeira transposição do São Francisco, o rio que acende as luzes do Nordeste. Quando a energia ainda estava para chegar, pilheriava-se dizendo que as lâmpadas iam se encher da água que viria pelo fio. O fato é que se deixou de cortar árvores para acender a luz e movimentar a força das usinas elétricas. A natureza agradece.

Hoje, o espaço da usina de Cruz do Peixe – que era também garagem de bondes – é utilizado para a prática de eventos artísticos e culturais, onde Lula Pena se apresentou sexta-feira. Nascida Maria de Lurdes Pena, em 15 de maio 1974 (falta um mês pra seu aniversário), ganhou esse apelido de Lula, simples como ela, cantora única no mundo com seu estilo personalíssimo e sua voz inconfundível – poderosa voz de fada e de bruxa, as duas juntas, numa confluência difícil de ser conseguida. Uma voz grave, que vem das entranhas da terra, vulcânica, rubra, plena de força. Veja.

Lula Pena é também única na maneira de tocar seu violão, digo sua guitarra – pois é assim que se diz em Portugal, onde ela nasceu, vive e renasce, cantando sua mistura de músicas em que a base é portuguesa, mas onde há lugar para muitas culturas, inclusive a brasileira. Ela faz um cadinho, um “pot-pourrir”, um “medley” de todas as origens musicais, entrando e saindo de um e de outro filão como se fazia outrora com as histórias de Trancoso, pelas pernas de pinto e de pato, que El Rei mandou. Foi assim que se apresentou no 6º Cineport – Festival de Cinema de Países de Língua Portuguesa.

Lula recompõe o que canta, dá sua marca personalíssima às músicas que interpreta com estilo só dela. Sorte dos compositores, que são eternizados. Chico César é um deles, agraciado por esse encantamento. O violão, digo, a guitarra, é o único instrumento a fazer companhia à voz de Lula. Ela não se apresenta com banda; somente seu violão a companha, numa economia de notas em que insinua a melodia, na sua mágica de fada e de bruxa. Na verdade, sua guitarra são dois instrumentos – de cordas e de percussão, por vezes simultâneos, a mão esquerda fazendo pizzicato, a direita espancando o tampo no momento exato como quando, em “O meu amor”, de Chico Buarque, bate à porta na frase “desfruta do meu corpo como se meu corpo fosse a sua casa”. Veja no Youtube, pois os discos de Lula são raros.

Seu corpo é casa da música. O cineasta Vladimir Carvalho observou que todo o corpo de Lula integra-se com a guitarra quando toca a música e nossa atenção. O público concentra-se de forma absoluta na cantoria de Lula. Parece que ninguém respira, dedicado a ouvir o que dizem a voz e o violão da cantora. Dizem muito, como dizem as encantadoras. O outro cineasta, Walter Carvalho, também foi testemunha do que digo, pois estava presente e entende de arte como poucos ouvintes e videntes.

Ela me disse que pretende fazer uma experiência com a música mediterrânea e provençal. Se Lula ler estas mal traçadas, lembro que Dom Diniz, o rei poeta, escreveu poemas em provençal. Será uma bela parceria, rei e rainha portugueses, poeta e musa, a cantar numa das línguas mais belas do mundo. Talvez chovendo no molhado, lembro ainda a tradução que Augusto de Campos fez de Arnaut Daniel e Rimbaud d’Aurenga, “Mais provençais”, publicada em edição bilíngue. Desconfio que estou chovendo no molhado, sim, pois se Lula achou o caminho da Força e Luz, sabe também as veredas dos bardos da Provença, sábios de melodias, que encantaram Dante como Lula nos encantou.

*Jornalista, escritor, poeta, ensaísta, publicitário e membro do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, da Academia Paraibana de Letras e da Academia de Letras e Artes do Nordeste.


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