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22
abr
2014

Otávio Sitônio Pinto*

(Paraíba, 17/IV/2014) O mundo lusófono é formado pela maioria das populações de Portugal, Açores, Cabo Verde, Angola, Moçambique, Timor-Leste, Goa, Macau, Malaca, Brasil, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e outras praias de além-mar. Perfaz cerca de 230 milhões de falantes, o que eleva o Português à condição de quinta língua mais falada no mundo e terceira no Ocidente. Mas se trata de um grupo ainda pobre, sem a força de uma economia poderosa que venha a conferir prestígio a seus componentes.

Por outro lado, a Língua Portuguesa ainda não é veículo de grandes obras científicas e filosóficas em número significativo, e para ela ainda faltam ser traduzidos textos importantes do acervo universal. Em que pese já possuir uma respeitável literatura, essa se ressente da modéstia econômica, política e bibliográfica da Língua Portuguesa e dos países por ela representados.

O sociólogo brasileiro e nordestino Gilberto Freyre nomeou esse universo como “luso-tropical”. Em sua obra voltou-se para “o estudo das relações antropossociológicas entre europeus e não europeus nas áreas tropicais”. Freyre diferenciou Portugal dos outros países colonizadores, pois, segundo ele, o colonizador português conseguiu mestiçar seu sangue e sua cultura com os povos submetidos dos trópicos. Essa mestiçagem foi conseguida à força de violência; porém, deu resultados mais aceitáveis que apartheids.

Freyre e a ditadura

Lamentavelmente, a tese de Freyre serviu de embasamento ideológico para a ditadura salazarista e a demora de Portugal em prosseguir com sua política colonial. A saída tardia (e, assim, apressada) de Portugal das suas colônias não permitiu a formação de uma comunidade política luso-tropical, nos moldes da Comunidade Britânica, de que hoje Moçambique faz parte — testemunho de que as nações modernas sentem necessidade de associação.

O fenômeno da mestiçagem étnico-cultural vai mais aquém e além de que “as relações entre europeus e não europeus nas áreas tropicais”, pois abrange, também, as relações intertropicais, no período pré e pós-colonial. É o caso das relações imemoriais nos espaços mais expressivos da presença portuguesa na África, digo entre Angola e Moçambique, praticadas pelos primeiros descendentes do Australopiteco, pai da Humanidade.

Essas relações pré-coloniais foram facilitadas pela calha cultural comum do sistema fluvial Congo/Zambeze, rios nascidos na mesma fonte (Meseta do Zambeze), a poucas léguas um do outro, e que defluem em sentidos opostos para desaguar em oceanos distintos, o Atlântico e o Índico, formando, no meu dizer, um só rio transoceânico. E os rios foram as primeiras estradas do homem que, ainda quando não sabia navegar, seguiu suas margens à pé.

Caráter sincrético

Como relação colonial é exemplo o êxodo africano forçado para o Brasil, principalmente dos polos emissores Angola e Moçambique. No destino brasileiro se gerou um povo mestiço dos três estoques raciais (os estoques amarelo, negro e branco), formando, consequentemente, uma cultura universalmente mestiça. Algo dessa cultura mestiçada refluiu para a Metrópole, como o fado, nascido em território brasileiro de pai angolano (lundu) e mãe portuguesa (modinha), no tempo do reino unido Brasil-Portugal-Algarve. Levado pelos retornados à Metrópole, lá cresceu e se transformou por força das influências locais e heranças outras — a exemplo da moura, por sua vez já africana.

A formação cultural brasileira tem esse caráter sincrético, pois o Brasil é fundamentalmente mestiço, à exceção de áreas restritas que recepcionaram novos colonos europeus. Mesmo assim, essas áreas deram vez ao nascimento de nomes notáveis da música mestiça brasileira como Lupicínio Rodrigues e Caco Velho (Matheus Nunes), esses no estado do Rio Grande do Sul, na fronteira meridional. Assim como o Brasil, todo o mundo lusófono tropical tem caráter mestiço e sincrético.

No universo lusófono têm surgido iniciativas isoladas e espontâneas de mestiçagem musical. A toada Mãe Preta/Barco Negro, de Caco Velho/Piratini/David Jesus Mourão-Ferreira é exemplo — em que pese ter sido provocada pela censura salazarista que alterou o poema original brasileiro, Mãe Preta, de forte cunho social e político e deu lugar à lírica amorosa de Mourão-Ferreira, com Barco Negro. A toada Mãe Preta é a única música brasileira de sucesso que fala em escravidão; daí sua grande importância social e política. Por isso, Mãe Preta/Barco Negro pode ser visto como um divisor de águas ideológico na música mestiça lusotropical: a vertente de Mãe Preta flui para a esquerda, a de Barco negro corre para a direita. Ao mesmo tempo que é divisor de águas, é também o ponto de encontro marcado entre a música brasileira e portuguesa. Por isso, não se surpreenda o Douto Leitor com a recorrência em que a toada gaúcha é citada neste ensaio.

Lembrados e esquecidos

São muitas as vozes portuguesas que, desde Maria da Conceição e Amália Rodrigues, Deolinda Bernardo, até Margarida Guerreiro, Rita Guerra, Kátia Guerreiro, Ana Moura, Cristina Branco, Raquel Peters, Rosa Negra, banda Amor Electro, o Colletive Gospel, e banda Maria Lua, interpretam a toada de Caco Velho e sua versão para o português metropolitano – além dos esquecidos, como há esquecidos!

Mãe Preta teve grandes momentos no arranjo da interpretação de Ana Faria (cantora e percussionista), onde se destaca o som de uma chibata (que está presente na letra), assim como no arranjo da interpretação de Lissandra Lima, onde também se pode notar, na percussão, um efeito disfarçado de chibata, um tanto fora de cena (em off), e noutros arranjos. Também notável é a interpretação da cantora portuguesa Dulce Pontes para Mãe Preta, assim como a da brasileira Virgínia Rosa. A chibata de Mãe Preta se faz ouvir em muitos arranjos da música de Caco Velho, para quem apure o ouvido aos detalhes da percussão. Pode-se dizer que ela é um instrumento luso-tropical.

Algo semelhante foi utilizado pelo percussionista Dalú na primeira gravação que Mariza fez de Barco Negro (CD Fado em Mim), onde se ouve nítido o som de uma chibata; mas esse artifício não pode ser associado à lírica de Mourão-Ferreira, pois sua letra não faz nenhuma referência aos procedimentos e sofrimentos da escravidão no Brasil. Destaque semelhante na percussão se notará na primeira gravação de Transparente (Abreu Lima/Rui Veloso), quando o tambor (leia-se elu) de Marcelo Costa se manifesta ao serem pronunciadas as palavras "minha avó negra".

Mestiçagem musical

O cantor Ney Matogrosso emprestou seu talento à gravação de Barco negro. Mas, o original Mãe Preta continua esquecido pelos intérpretes brasileiros – à exceção da já citada Virgínia Rosa.

O português Roberto Leal ainda canta a versão da censura salazarista, com a palavra “chibata” substituída por “trabalhava”: Enquanto na senzala trabalhava o seu amor… Com a interpretação de Leal, Mãe Preta/Barco Negro ganha três versões: a de Caco Velho, a de Mourão Ferreira e a de Oliveira Salazar.

O gaúcho e negro Caco Velho ainda compôs, para Amália Rodrigues, um sincretismo de bailinho (português) e de samba, como é a peça Conselho, e outras experiências nos anos cinquentas. Luís Gonzaga, ainda nos anos cinquentas, criou o fado-baião Ai, Ai Portugal; Dorival Caymmi também fez sua parte (Francisca Santos das Flores), e compositores recentes, como Chico Buarque (Fado Tropical) e Caetano Veloso (Os Argonautas), fizeram fado sincrético (em princípio, todo fado já é sincrético). Meu amigo e conterrâneo Sivuca experimentou o ritmo sul-africano upakanga (acrescente-se a isso o fato de ter sido maestro de Miriam Makeba e do Duo Ouro Negro, e do ianque-jamaicano Harry Belafonte).

Uma dúzia de compositores reunida no LP Fados Brasileiros (editora Marcus Pereira), na voz de Paula Ribas. E Gal Costa tem um grande momento na tropicalização de Milho Verde, tradicional português da Beira Alta, com arranjo de Gilberto Gil (o próprio milho é uma contribuição das culturas americanas à economia europeia). A mestiçagem musical também se manifesta em Cabo Verde, com Sara Tavares, Cesária Évora (recentemente falecida) e Tito Paris, e em Angola, com Paulo Flores e Felipe Mukenga.

Você e Eu

Portugal se faz presente de forma notável na música nova lusófona, onde se destacam o clima tropical dos arranjos do brasileiro Jacques Morelenbaum no CD Transparente (Mariza, 2005) — principalmente na faixa título de Paulo Abreu Lima/Rui Veloso e nas peças Fado Português de Nós (Paulo de Carvalho), Fado Tordo (Fernando Tordo) e Toada do Desengano (Vasco Graça Moura/Franklin Godinho). Acrescente-se a isso o fato do CD Transparente ter sido gravado com instrumentistas brasileiros, no Rio de Janeiro, a antiga capital do Reino Unido Brasil-Portugal-Algarve.

Mais outros juntaram seu engenho e arte à expressão dos povos luso-tropicais, como as cabo-verdianas Celina Pereira e Sofia Barbosa, o casal Rodrigo Costa Félix/Marta Pereira da Costa, as cantoras Mafalda Arnauth, Joana Melo, Ana Sofia Varela, Joana Amendoeira, o extinto grupo Madredeus e muitos que, por ignorância ou injusto esquecimento, deixo de citá-los aqui. Merece destaque o trabalho de Teresa Salgueiro, principalmente de seu álbum Você e Eu, onde homenageia a música popular brasileira com um repertório clássico de grandes autores brasileiros de ontem e de hoje, quero dizer, de sempre, mais de sempre ainda na voz de Tereza.

Mas nem tudo é afro na mestiçagem luso-tropical. Não se pode esquecer as Índias, quer Ocidentais, quer Orientais, e as ilhas (Madeira e Canárias), e as Ásias (Goa) e Oceanias (Timor Lorosa). Há mestiçagens inclusive ainda por fazer, como a inclusão cultural dos povos amarelos arredios que sobreviveram ao contágio europeu e habitam os desertos amazônicos do Brasil.

Transparente

Entendo que o fenômeno da mestiçagem musical de expressão portuguesa (manifestada, no passado e no presente, de forma espontânea), vem atender ao reclamo da identidade étnico-cultural do mundo de fala lusitana, identidade necessária quer internamente, entre seus povos, quer externamente, diante das nações — onde os povos luso-tropicais, de culturas tão ricas, não têm o destaque merecido, ainda reduzido pelas limitações políticas referidas no início deste texto.

O sucesso e o resultado como norte cultural, obtidos no CD Transparente, a que se seguiu o espetáculo itinerante de Concerto em Lisboa, devem seu crédito aos esforços somados da cantora Mariza, do maestro Jacques Morelenbaum e de uma plêiade de compositores e de instrumentistas. Tanto o CD, gravado em estúdio, como o DVD do espetáculo vêm atender à necessidade acima referida de identidade, de expressão e de comunicação entre os povos luso-tropicais e desses povos para com o mundo.

À Mariza cabe o mérito da iniciativa de convocar os compositores e o maestro Jacques Morelenbaum para essa navegança da música lusófona; ao maestro, além dos arranjos e de seu desempenho pessoal no violoncelo, credite-se também a escolha dos músicos brasileiros que fizeram a banda na gravação de estúdio, pois no Concerto tocaram os músicos de Mariza e a Orquestra Sinfonieta de Lisboa.

Assim, maestro e músicos, quase todos brasileiros, somados à cantora de nação Moçambique, ela já mestiça luso-afro-hindu-hispano-germânica, mais os compositores portugueses e a parceria luso-brasileira de Barco Negro (Caco-Velho/Piratini/David Jesus Mourão-Ferreira), fizeram a mestiçagem musical do CD Transparente, onde se ouve fados com arranjos para chorão e clarineta, como na Toada do desengano. Até agora, o CD Transparente foi o momento em que a mestiçagem musical lusófona alcançou sua expressão maior.

Uma só peça

A música tradicional portuguesa também deve e pode ser apresentada juntamente com a música mestiça, como não deixou de ser feita. A música tradicional é o banco genético de onde se extraem os elementos relativamente puros para a formação da mestiçagem musical. Assim, o trabalho de outros artistas, preocupados com o purismo, não deve ser desprezado, pois é do encontro dos puros que nasce o mestiço. Eles, os puristas, querendo ou não, vêm a ser a fonte da mestiçagem. Alguns, mesmo quando puros, são ecléticos quando reúnem, no seu trabalho, peças de várias culturas.

Mas é preciso distinguir ecletismo de mestiçagem. Artistas portugueses há que estão fazendo um trabalho eclético, cantando músicas de origens diversas, inclusive brasileiras; esse é um trabalho necessário e nem menos nem mais importante que o da mestiçagem musical, mas um precioso trabalho que ainda não pode ser considerado como um resultado mestiço, pois suas peças, antípodas que sejam, não têm o hibridismo cultural que vem caracterizar a música mestiçada.

Na linha da lusofonia mestiça ainda está a se esperar uma gravação, numa só peça, da versão original de Mãe Preta (Caco Velho/Piratini), e, em continuidade, da segunda versão, que é Barco Negro (Caco Velho/Piratini/David Jesus Mourão-Ferreira). Até hoje, as duas peças têm sido executadas apenas numa versão ou noutra, porém nunca foram reunidas numa só faixa. Sugeri esse arranjo ao maestro Jacques Morelenbaum, que simpatizou com a ideia, ao tempo em que ele estava com Mariza, mas a parceria logo se desfez.

O extinto grupo Maria Lua (Manu Teixeira na percussão, Carlos Lopes no acordeão, Rui Silva no contrabaixo acústico, Tiago Oliveira na guitarra clássica) interpretou as duas versões da música de Caco Velho, com brilho, mas isoladamente, na voz de Lara Afonso (a RP do Benfica), porém não chegou a gravar as peças como uma só toada. Mãe Preta/Barco Negro é um exemplo sui generis da música mestiça luso-tropical, com duas letras e uma só melodia, e está à espera de uma voz que a interprete como uma só canção.

Lullaby Lula

Essa voz bem que pode ser a da cantora, arranjadora, compositora e instrumentista Lula Pena, que se destaca por executar suítes, ou caprichos, em que reúne e arranja peças de compositores diversos de países vários. Estou a ouvir-lhe a introdução de Mãe Preta, melodia e percussão na guitarra como bem sabe fazer a intérprete e cantautora de Troubadour, para em seguida entrar a voz com a letra original, e depois sua guitarra evoluir no capricho lusitano e a voz inconfundível voltar com Barco Negro.

Lula Pena, a cantora/instrumentista que se destaca no mundo pelo seu estilo único, se faz acompanhar somente por sua guitarra, ou por sua própria voz, quando reproduz instrumentos – o que facilita a realização de arranjos tão pessoais. A economia instrumental prossegue no dedilhamento de poucas notas, bastantes para insinuar a melodia num processo “cool”.

Se Charles Aznavour tocasse guitarra, talvez pudesse parecer com Lula Pena. E se tivesse a inventiva de encadear e recompor as canções como se fossem contas de um rosário de queixas e de esperanças, cantado para o Menino Deus dormir, e, sonhando, atender as súplicas dos meninos pobres, ricos de estrelas.

Da mãe preta era a voz que acalantava os filhos brancos da América, como no lullaby de Summertime e outras berceuses ainda cantadas nas noites brasileiras para nossas crianças dormirem, cunas que podem fazer parte do barco negro de Lullaby Pena. Ela que já vem fazendo lusofonia mestiça na mixagem das peças que improvisa e arranja em seus concertos, peças tão portuguesas, tão brasileiras, tão universais.

*Jornalista, escritor, poeta, ensaísta, publicitário e membro do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, da Academia Paraibana de Letras e da Academia de Letras e Artes do Nordeste.


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