sáb
23
ago
2014

“Foram dar autógrafos no Inferno, onde a cangaceira faz companhia a Lílite, primeira mulher de Adão, atual de Lúcifer”

Sitônio PintoOtávio Sitônio Pinto*

Perguntei a um da Funai porque os Pataxós Rã Rã Rãe são chamados assim, de Rã Rã Rãe. Antes de me responder ele me corrigiu. Queria que eu tratasse os Pataxós no singular, com o artigo no plural. Quem fala assim são os ianques, argumentei. E os antropólogos brasileiros vão atrás. Pronunciam os nomes de tribos e de famílias no singular. Mas não dizem “os francês”, ou “os ianque”, ou ainda “os árabe”.

O da Funai devia estar com preguiça de responder, pois insisti para saber porque os Pataxós têm o complemento de Rã Rã Rãe e ele me disse que era porque eles são assim mesmo, Rã Rã Rãe. Quem sabia essas coisas era meu outro primo Zé Elias, mas já cantamos e dançamos seu Quarup. Zé respondia essas e outras. Ficamos sem resposta, sem explicações para nossas dúvidas.

– Zé, quantas e quais disciplinas você ensina ou já ensinou?

– Ao todo dezessete, de Esgotos a Linguística: ensinei Higiene das construções, Esgotos, Mecânica dos solos, Linguística, Literatura inglesa, Literatura americana, Literatura francesa, Literatura portuguesa, Literatura brasileira, Teoria da Literatura, Jornalismo comparado, Latim, Português, Francês, Inglês, Matemática, Física, Antropologia…

Uma vez estávamos em cabaré e ela perguntou o que ele era. Elas são interesseiras e curiosas. Ele não disse que era engenheiro, disse simplesmente: “professor”. Era o que meu primo era. Um baita professor, um professor rã rã rãe. Quando era menino, Zé inventou uma língua. Isso antes de aprender Interlíngua e Esperanto, Latim, Espanhol, Italiano, Francês, Inglês, Alemão, Russo, Tupi e o que restou do Cariri.

Zé olhava para a cara das pessoas e dizia que o fulano descendia de tal tribo. Dizia que eu era Tarairiú, a grande tribo que habitou os sertões do Nordeste e brigou com os portugueses na Guerra dos Bárbaros. Uma tribo alta e branca, que veio da Ásia Central, onde tem parentes com seus traços étnicos. Os Tarairiús calçavam sandálias e não dormiam em redes, como os outros índios, mas em esteiras.

Esses índios brancos praticavam o endocanibalismo: assavam e comiam seus parentes mortos para tê-los dentro de si, numa demonstração extrema de afeto. Tinham rei; o maior deles foi Janduhy, que reinou sobre várias tabas e comandou a Guerra do Sertão, ou dos Bárbaros, por muito tempo. Lutaram até o último homem, numa guerra de cem anos. Deles só escaparam as mulheres, feitas escravas sexuais pelo invasor. (Boa publicação a “Revista Tarairiú”, editada em Campina Grande. Acesse.)

Os Pataxós são Rã Rã Rãe mesmo. Ainda hoje estão resistindo à presença do invasor branco. Tempo desses mataram à borduna onze brancos (mais ou menos brancos) que estavam desmatando suas terras. Agora mesmo estão em conflito declarado na Bahia contra “produtores rurais”. Ora, os índio (é pra dizer assim?), primeiros e legítimos donos da terra, de onde foram expropriados, sempre foram produtores rurais: plantavam mandioca, milho, batata, amendoim etc. Plantavam etcs (sic) em grande quantidade.

Essa dos Pataxós terem matado onze brancos de uma vez lembra a surtida que meus avoengos Tarairiús fizeram no Rio Grande do Norte, ocasião que mataram dezenas de colonos refugiados numa igreja. Tempo desses a Igreja canonizou esse grupo de fiéis, pois morreram na igreja. Um grupo de santos anônimo que ninguém sabe seus nomes, nem Zé sabia.

Onze também foram os cangaceiros que a polícia de Alagoas matou na Grota dos Anjicos, em 28 de julho de 1938. Quer dizer, matou dez cangaceiros e uma cangaceira, amásia do chefe do bando. O resto correu, pois sempre corriam quando a briga esquentava. A polícia matou e degolou, rã rã rãe. Dizem que a bandida ainda estava viva. Depois arrumou as cabeças para a última foto do bando. Foram dar autógrafos no Inferno, onde a cangaceira faz companhia a Lílite, primeira mulher de Adão, atual de Lúcifer.

Notícias vindas do front dão conta de que as tropas e bombardeiros de Israel já mataram mais de dois mil civis palestinos na Faixa de Gaza – pois lá não tem militares, só paisanos, crianças paisanas. Mas o povo palestino continua resistindo, é o destino. Rãça rã rã rãe.

*Jornalista, escritor, poeta, ensaísta, publicitário e membro do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, da Academia Paraibana de Letras e da Academia de Letras e Artes do Nordeste.


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