qui
02
out
2014

“Lembro-me de uma ticaca que o cachorro farejou e acuou na toca. Ele cavou até quando ela mijou na cara dele”

Sitônio PintoOtávio Sitônio

Deu no jornal virtual Ambiente Brasil, de 30/09/14, que o planeta Terra perdeu mais da metade da sua fauna nos últimos 40 anos. Daí pra lá. Sou testemunha dessa hecatombe. Quando eu era menino, há pouco mais de meio século, a nossa propriedade no Semiárido era povoada abundantemente por várias espécies de animais silvestres e selvagens.

O curral ficava lastreado de cabeças-vermelhas que vinham ciscar o esterco. Era uma festa, muito bem descrita por Ascenso Ferreira: “Chove, chuva / pra nascer capim / pra boi comer / pra boi cagar / pra passarinho ciscar…” Os cabeças-vermelhas eram os mais populosos. Mas havia as rolinhas caldo-de-feijão e cascavéis, e os anuns pretos e brancos, e os periquitos pacus e jandaias.

Hoje, esses seres alados são raros. O veneno para as pragas matou também as aves que comem os besouros envenenados. Os urubus comem a carniça dos passarinhos e morrem. A vaca come o capim envenenado e as pessoas bebem o leite, também envenenado, e comem a carne envenenada do boi que comeu o capim de Ascenso Ferreira. No final, todos morrem envenenados.

Havia tantos saguins que as árvores balançavam suas galhas quando recebiam uma família daqueles pequenos macacos. Cada família não tinha menos que cinquenta saguins. Pulavam para a árvore vizinha e eram seguidos por outro grupo de parentes alegres e barulhentos. De que morreram os saguins? Também comeram veneno?

Havia até onças vermelhas e grandes serpentes, como as jiboias. E guarás, que atacavam as jiboias. Os guarás eram onívoros: chupavam canas e cobras. Para onde foram os guarás, as jiboias, as onças-de-bode? Lá em nós a população humana diminuiu mais que a da fauna: onde havia dez famílias só tem uma, e as famílias diminuíram de dez para quatro pessoas, por obra da pílula.

Algumas dessas famílias tomaram o veneno difuso nos roçados e nos pastos. Outras foram embora para o Sul devorador, quando o bicudo acabou com o algodão de fibra longa. O pior do veneno é que demora cem anos para perder seu efeito, entranhado na terra. Depois chegou mais um, o veneno para as ervas ditas daninhas, as que concorrem com o roçado.

Esse veneno do Vietnam ataca as plantas de folha redonda: substitui a capina e o fogo. O quinto estado da matéria também é venenoso: esteriliza a terra com suas chamas. A capina é peçonhenta quando a enxada puxa uma cobra para os pés do peão. As cobras peçonhentas não sentiram o efeito do veneno. Peçonha e veneno e são diferentes: este é inorgânico, aquela é orgânica.

As cobras ainda abundam nos roçados, atraídas pelos ratos das plantações de feijão e de milho. A população de ofídios aumentou nas Américas depois que o europeu chegou com o rato. Este faz parte da base da pirâmide alimentar das cascavéis, jararacas, surucucus, corais, haja cobras. Ainda não inventaram um veneno para elas. Talvez seja mais nocivo que o delas.

As ticacas ainda há. Lembro-me de uma ticaca que o cachorro farejou e acuou na toca. Ele cavou até quando ela mijou na cara dele: o canídeo enfiou o focinho na areia do riacho e saiu feito um arado, esfregando a venta na terra. Só sabe o que é isso quem já sentiu a inhaca do mijo da ticaca: incomoda à distância. E o cachorro tem um faro 200 vezes mais apurado que o dos humanos.

Mais da metade da fauna do mundo acabou-se nos últimos 40 anos. Lá em nós foi muito mais que a metade. São raros os cabeças-vermelhas, mais raros os anuns. As rolinhas, além do veneno, ainda sofrem a perseguição das espingardas. O sertanejo não aprendeu a comer cobra, feito os guarás. Dispensa-se um palmo abaixo da cabeça, para evitar a peçonha. É boa caça.

*Jornalista, escritor, poeta, ensaísta, publicitário e membro do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, da Academia Paraibana de Letras e da Academia de Letras e Artes do Nordeste.


  Compartilhe por aí: Comente

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *



Ir para a home do site
© TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. É PROIBIDA A REPRODUÇAO PARCIAL OU TOTAL DESTE SITE SEM PRÉVIA AUTORIZAÇAO.
Desenvolvido por HotFix.com.br