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23
out
2014

A reportagem da TV mostrou o jumento achado em Goiana, deu até o preço: trinta reais

Sitônio PintoOtávio Sitônio

A produção da TV foi eficiente. Conseguiu um jumento em plena Zona da Mata de Pernambuco, mais exatamente em Goiana. Na Zona da Mata, jumento é ave rara A cidade já foi a segunda mais importante de Pernambuco. Foi também a capital da Capitania de Itamaracá. Esse “já foi” não quer dizer decadência; apenas outros municípios progrediram mais. Hoje, Goiana tem o quinto PIB de Pernambuco. Sua riqueza vem da cana de açúcar, cultura mais importante desde o período colonial. Breve terá mais um incremento a seu PIB: a fábrica de automóveis da Fiat, em fase adiantada de construção.

Não entendi bem o que a reportagem da TV queria dizer mostrando o jumento. Ele não é um animal endêmico da Zona da Mata, mas do Semiárido. Este último é o seu habitat, onde é inigualável, resistente à seca e à escassez de alimento. Nem o bode se equipara. O bode é frugal, mas não tem a rusticidade do jumento. O bode tem um sistema imunológico vulnerável às epidemias, às macacoas de inverno. É na época das chuvas que o bode adquire infestações da estação. Mas jumento não adoece nem emagrece.

A reportagem da TV mostrou o jumento achado em Goiana, deu até o preço: trinta reais. Um jegue nem grande nem pequeno, tamanho padrão do Jumento Nordestino – raça reconhecida por esse nome, rústica entre os rústicos. O Jumento Nordestino é procurado e disputado entre os criadores de muares do Centro Oeste e do Norte do Brasil. Digo os jumentos besteiros, aqueles condicionados a cobrirem éguas. É desse cruzamento que nasce o burro, ou muar, ou mu, ou mulo. Mas é preciso ensinar ao jumento a procurar a égua, pois o equus asinus é de uma espécie diferente do equus cabalus, e a natureza tem suas regras – principalmente para a reprodução.

O jumento tem 64 cromossomos, a égua 62; somados os dois, fazem 126; divididos por dois, perfazem 63, número ímpar. A próxima divisão cromossômica (meiose) fica assim comprometida, o burro queda-se estéril e a mula infértil. Apenas duas em mil finalizam a gestação, quase sempre interrompida na segunda semana. A não ser quando a fêmea é filha do cavalo com a jumenta: tem-se aí outro animal, a bardota. Quarenta por cento das bardotas são férteis, quando fecundadas pelo cavalo ou pelo jumento, pois o burro, como já foi dito, é estéril.

A reportagem da TV não desceu a esses detalhes. Não sabe e nem se interessa. Queria mesmo era reduzir Goiana e o Nordeste. “A pobre Goiana”, como se expressou a locução. Corte para a fábrica da Fiat. O Nordeste não pode ter fábrica de carros, insinua a reportagem, só pode ter jumentos. Cruzado com a égua, o jumento dá origem a um animal mais resistente, mais forte, mais inteligente, de casco duro e couro grosso, de melhor passada que o cavalo. Só não é mais veloz. Quem conhece, dá preferência ao muar.

O rei David conhecia, e tinha uma burra como sua palafrém. Está na Bíblia, palavra da salvação. O futuro rei Pedro I também conhecia, e montava uma burra na ocasião em que deu o célebre Grito do Ipiranga, “independência ou morte!” Dia desses comentei esse assunto aqui na coluna; agora, a reportagem da TV com o jumento de Goiana me fez voltar ao tema. Dom Pedro fazia uma longa viagem, de Santos a São Paulo para o Rio de Janeiro. Entre Santos e São Paulo, a Serra do Mar, ladeirosa, cheira de subidas e descidas escarpadas. Quinhentos quilômetros de caminhos. Não é viagem para qualquer animal, burro é melhor.

A reportagem mostrou o interior da Fiat, você deve ter visto, corte para Dona Dilma na paisagem de Pernambuco. Por um triz não mostrou a presidente montada no jumento, dando o Grito da Independência. Minas Gerais, a terra de Dona Dilma e do seu adversário, tem bons jumentos. Trata-se da raça Pega, boa de sela. Os pegas andam com o chamado tríplice apoio, sempre com três membros no chão, o que lhes dá segurança, principalmente nas escarpas, e transmite conforto ao cavaleiro. Burros pegas, filhos de éguas mangalargas, têm essa característica. A coudelaria de Dom Pedro foi uma das vertentes da raça Mangalarga. Quem sabe, a burra do Ipiranga seria reserva da casa; bastava boquinha, bora burra, bora burra!

*Jornalista, escritor, poeta, ensaísta, publicitário e membro do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, da Academia Paraibana de Letras e da Academia de Letras e Artes do Nordeste.


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