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24
jan
2019

Para especialista, a bossa nova é credora da música dos Estados Unidos

Zuza Homem de Mello-Divulgação

A próxima sexta-feira (25) é Dia Nacional da Bossa Nova. A data também é aniversario de Antônio Carlos Jobim, que se fosse vivo completaria 92 anos. Para o pesquisador da música brasileira Zuza Homem de Mello, de 85 anos, o compositor de Águas de Março, ao lado do pianista norte-americano Duke Ellington, é a maior personalidade musical do século 20, o “século da canção”, como diz.

Jobim é apenas um dos músicos universais que Zuza conheceu pessoalmente em sua longa carreira de musicólogo, jornalista, escritor, radialista, engenheiro de som, curador de festivais e diretor de shows, além de baixista profissional – tocou na década de 1950 no trio de Dick Farney.

Ainda jovem, saiu do palco e foi para as coxias e bastidores para fazer o que mais gosta: “ensinar as pessoas a ouvir música”. Chamado de “mestre” por muitos, ensinou amadores e até grandes músicos, como o baixista Don Payne, que de passagem pelo Brasil no final dos mesmos anos 1950 junto com o cantor Tony Bennett, prestou atenção na música que Zuza mostrava e que se fazia no Brasil: a bossa nova.

Agência Brasil: A origem do jazz tem a ver com a afirmação da cultura negra norte-americana. Mas no Brasil, havia críticos que torciam o nariz e reclamavam da contaminação da música brasileira pelo jazz, que teria atingido um ponto máximo na bossa nova. No seu documentário, o pianista André Mehmari executa um “jazz” do Pixinguinha. Esse temor faz algum sentido?

Zuza: Não. Não faz sentido nenhum. As duas músicas procedem do continente africano. Não nos esqueçamos que os escravos negros que vieram para as Américas [do Sul e do Norte] procediam de diferentes regiões da África. A música quando chegava, tentando recordar aquilo que era da África, se misturava com aquilo que havia onde estavam. Com isso, o que resultava eram coisas diferentes. Em New Orleans tinha influência espanhola, francesa e inglesa. Aqui, vieram para Salvador, onde haviam os brancos portugueses e os indígenas. Então, é claro que o resultado é diferente, mas a raiz é a mesma. Dizer que a música brasileira não tem nada a ver com o jazz é um puro preconceito. É um medo de olhar para a gênese da música brasileira. É um receio, ou talvez incompreensão, de que isso é um fato. Isso para mim é uma tese que está comprovada com o que diz [no documentário] pessoas competentes como [o trompetista] Wynton Marsalis, como o Gary Giddins, que é o maior crítico de jazz, e que revela o quanto o jazz ficou devendo à bossa nova no momento que se viu meio desnorteado com a chegada do rock. Existe uma influência. Na época que o Pixinguinha foi para a Europa, em 1922 com os Oito Batutas, ele foi tocando flauta e ao voltar para o Brasil ele retorna tocando saxofone, um instrumento de jazz. Mais do que isso, ele usa o saxofone como um contracanto para as gravações de espetáculo em que o flautista era outra pessoa. Ou seja, ele se coloca em um lugar exatamente igual ao que se coloca um jazzista de New Orleans, em que há um contracanto para a melodia principal.

Agência Brasil: A música instrumental brasileira de hoje é tributária da bossa nova?

Zuza: Na bossa nova, os músicos começaram a fazer improvisos mais longos. Coisa que não existia nas gravações de música instrumental brasileira, improvisos mais longos idênticos aos improvisos do jazz. E por quê? Porque o disco de três minutos [tempo de execução em cada lado dos discos de 78 rotações] não permitia isso. Só era possível ouvir músicos brasileiros fazendo improvisos nas orquestras dos taxis dancer no Rio e em São Paulo. Eu frequentava muito. Nessas orquestras, não havia problema de tempo. Os músicos podiam improvisar em cima de choro e de música de gafieira.

Agência Brasil: No seu livro sobre Copacabana, você diz que o samba-canção fez a música brasileira avançar. Mas há quem ache que aquela música era o nosso bolero e era uma música muito soturna, devidamente deixada no passado. Que importância o samba-canção teve para o surgimento da bossa nova e para a música que veio depois?

Zuza: Aqueles compositores que estão nomeados no último capítulo do livro, Os Modernistas, são compositores que faziam questão de mostrar um avanço harmônico e melódico. Eram pessoas inquietas. Você pega Antônio Carlos Jobim, José Maria de Abreu, Tito Madi, todos eles faziam samba-canção visando a modernidade, aquilo que não existia nas composições de autores anteriores, da chamada Época de Ouro.

Agência Brasil: Você trabalhou diretamente nos festivais que revelaram uma geração musical. A televisão mudou a maneira de fazer música popular?

Zuza: Ela abreviou a percepção do público para artistas que apareceriam fatalmente na música brasileira. O valor desses quer surgiram na Era dos Festivais cedo ou tarde se faria notar. Quando eles apareceram na televisão, as pessoas tomaram contato direto com as suas primeiras músicas e em primeira mão. Não se esqueça que todas aquelas músicas eram então inéditas. A pessoa assistia pela televisão a primeira vez que uma música estava sendo executada. Foi um estilingue extraordinário para a música popular brasileira, que até então era conhecida pelo rádio. Mas a grande mudança, a meu ver, se deu no Festival [de Música Popular Brasileira] de 1967 [organizado pela TV Record], quando os compositores foram para os palcos para interpretar as suas próprias músicas. Edu Lobo foi cantar sua música, Ponteio. Gilberto Gil, Domingo no Parque; Caetano Veloso, Alegria, Alegria; e Chico Buarque, Roda Viva. Os compositores se projetaram como cantores, como intérpretes de suas próprias composições. Isso deu uma nova configuração: os cantores não são mais os donos das músicas.

Agência Brasil: Por causa do disco, do rádio e da TV, podemos dizer que o século 20 foi o século da música?

Zuza: Foi o século da canção. Canções são músicas que têm letra, o que não inclui a música lírica. As canções têm um sentido próprio que começa e termina naquela música. Já a música lírica faz parte de um conjunto de uma sequência, do roteiro que é a própria ópera. A canção tem começo, meio e fim. O século 20 revelou compositores maiores de canções no mundo inteiro, não foi só no Brasil.

Agência Brasil: Noel, Ary e Caymmi tiveram sucessores. Tom, Vinicius e João Gilberto tiveram sucessores. Gil, Caetano e Chico não têm e permanecem como os “três orixás da MPB”. A música popular brasileira vai morrer?

Zuza: Você foi um pouco restritivo no nome desses três. Você não pode deixar de incluir o Paulinho da Viola, o Edu Lobo, o Milton Nascimento. Estão todos no mesmo nível, na mesma excelência de composição. Ao incluir outros nomes, verá que há outros descendentes. Você não pode dizer que João Bosco e Djavan não estão no mesmo padrão. A música brasileira vive um momento extraordinariamente rico. Todos eles estão em franca produção. São essas pessoas que sustentam a nobreza da música brasileira. A nobreza não pode ser confundida com aquilo que a mídia propõe como sendo o destaque, o sucesso, aquilo que se baseia pelo número de visualizações na internet.

Agência Brasil


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