ter
06
maio
2014

“O berrante é a trompa que anuncia a vitória do homem senhor sobre o índio, o negro, o camponês”

Otávio Sitônio Pinto*

No tempo do ouro a capital de Goiás era Goiás Velho, uma joia colonial incrustada no sertão do Brasil Central. A arquitetura da época está preservada porque a cidade parou de crescer quando o ouro acabou. E não decaiu porque chegou o ouro do boi, uma civilização parecida com a civilização do couro que o semiárido nordestino viveu no começo do Brasil. Até o chão está preservado em Goiás, as ruas com seu calçamento de pedra como no tempo a cavalo, as casas a cavalo do tempo de ouro e couro.

Outras pedras também preciosas ou semipreciosas calçavam a História de Goiás. O Brasil era rico, de Minas a Goiás e Mato Grosso. Um tempo dourado. Até que o berrante substituiu a bateia. Se o ouro e as pedras de brilho foram tirados às águas dos rios pelo braço escravo, o espaço foi tomado ao índio exterminado. E o camponês substituiu o escravo. Assim com o índio foi eliminado daquela geografia desumana, o camponês, quando colono, também foi sacrificado como o boi. O horizonte medrou do cerrado e da mata irrigado por sangue.

O tom do berrante é fúnebre. Um tom que nasceu na lida do gado e nas comitivas que levavam os bois pelos caminhos dos matadouros. O berrante é a trompa que anuncia a vitória do homem senhor sobre o índio, o negro, o camponês, o espaço. O pequeno proprietário, o posseiro, foi tangido a rifle ou semeado na terra com seu corpo defunto. Nesse espaço brotou a insatisfação social do posseiro contra o grileiro. O primeiro uma espécie de índio mestiço, o novo homem que veio ocupar o chão tomado ao homem antigo e nativo da terra. O segundo o grileiro, o senhor das armas e da capangagem.

Foi nesse espaço que nasceu, viveu e morreu Dom Tomás Balduíno, o bispo de Goiás. O bispo pós-graduado em antropologia e linguística, que falava a língua e a linguagem dos índios e dos pobres, que defendia com seu báculo de pastor os oprimidos dos tempos modernos. O ouro, as pedras, foram substituídos não só pelo boi, mas ainda pelo ouro em grão do feijão-soja – que fez do Brasil o seu maior produtor no mundo. Mas se o espaço do garimpo é restrito ao leito dos rios, o ouro do couro e o ouro do grão exigem um espaço além do horizonte, onde só cabe o homem vaqueiro e o cavaleiro do trator. Quem não se submeter, tem de sair ou morrer.

Fui três vezes a esse espaço, ao encontro de amigos históricos, voluntários na luta dos homens ao lado de Dom Tomás Balduíno – o padre Carlos Parada e a religiosa Chiquita Vaz. Não viajo para lugares, e sim para pessoas. Parada esteve na lista divulgada na revista Veja dos sorteados para morrer pelas armas do latifúndio, como o padre Chicão, que levou um tiro de espingarda na cara e lhe cegou os dois olhos. Com eles estive hospedado na Escola do Evangelho, o seminário que Dom Tomás criou em Goiás para evangelizar o homem mestiço, filho do índio e do invasor. Chiquita ensinava teologia numa terra fértil de teólogos, junto com Dom Tomás. O pernambucano Marcelo Barros, um dos expoentes da equipe de Dom Tomás, é considerado um dos maiores bibliólogos católicos.

O espaço do Brasil Central é imenso, mas nele não cabe o povo, pois a cobiça é exclusivista. Para evangelizar esse povo, disperso nos horizontes, Dom Tomás aprendeu não somente suas línguas e sua linguagem, mas aprendeu, ainda, a voar como os enviados de Deus: ele pilotava o avião que pousava nas corrutelas e tabas distantes.

Voltei duas vezes àquele mundo; estive na Romaria da Terra, mas não vi Dom Tomás. Ou vi: no sonho em que ele me ordenava, naquela noite em que dormi no seu Seminário. Dom Tomás ungia minhas mãos e colocava sobre elas uma Colt 45, da Itaca. Com essa pistola passo por qualquer detector de metais; oculta na minha ilharga, só os anjos sabem.

*Jornalista, escritor, poeta, ensaísta, publicitário e membro do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, da Academia Paraibana de Letras e da Academia de Letras e Artes do Nordeste.


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