sáb
20
set
2014

“Ronco se envultava, virava toco quando perseguido pela polícia. Fumaçava como pau brocado. Tem muita história para contar”

Sitônio PintoOtávio Sitônio

Ronco Grosso tinha poderes. Não sei se vinham daquele rosário azul que trazia pendente do pescoço, junto com o escapulário. Rosário que ele debulhava todas as noites, na intenção das almas que havia ajudado a ir para o Outro Mundo – com a chama do fuzil, do Colt 38 ou da pajeuzeira de 12 polegadas embainhada no coes da calça, sob o paletó.

Cedo, Ronco Grosso começou sua vida de lutas. Ouvi-o contar como despachara as duas primeiras vítimas. Foi na Serra do Teixeira. Ronco ajudava um almocreve no vai-e-vem das viagens. O homem ia na frente, o menino atrás, no coice da tropa, para aprumar alguma carga que tombasse. Nas mãos, o papo-amarelo pronto para a ação.

E chegou a hora no Apertar da Hora – a curva tenebrosa na descida da serra, de Teixeira para os Patos do Major Miguel. Quando Ronco descobriu a curva, deu com dois cangaceiros assaltando o homem. Um deu de garra na rédea do animal, outro apontou a Comblain para o tangerino. O primeiro tiro Ronco disparou contra o da Comblain; o segundo foi para o da rédea. Os corpos caíram no abismo.

Ronco se envultava, virava toco quando perseguido pela polícia. Fumaçava como pau brocado. Tem muita história para contar, com seu ronco de leão como a voz do cantor Louis Armstrong. Tinha mesmo que aparecer ao neto escritor para registrar suas façanhas e causos. Este livro de Aldo Lope (sic) é um texto psicografado, eu sei. Não é só Chico Xavier que recebia narrativas do Outro Mundo: Aldo Lope também recebe, mesmo incréu e ateu.

Aldo ia dormir, mais um capítulo amanhecia escrito. Por isso seu livro não tem muita lógica para quem está habituado à narrativa clássica dos vivos. A sintaxe das páginas pode parecer mal assombrada, ou mal ensombrada. Trata de um circo que aportou no gume da Serra da Perdição, onde o escritor e eu nascemos.

Circo já é um tema fantástico, muito mais um circo naqueles tempos da Guerra de Trinta, Guerra da Perdição. A guerra que incendiou o golpe do mesmo ano e o país do Brasil. A história do circo na guerra é narrada por Aldo, ou por seu avô rezador, brigador, contador.

Ronco era um dos capitães da força que meu Tio e Coronel armou para defender Perdição dos cangaceiros, da Coluna Prestes e da truculência do governo de Trinta. Ronco Grosso fez parte do grupo que matou o cangaceiro Meia-Noite, expulso do bando de Lampião por causo (sic) de uma reclamação trabalhista. Ronco trouxe as orelhas do bandido enroladas num lenço, dentro do bornal, para mostrá-las ao meu Tio. Minha mãe viu a cena, e eu o ouvi narrar o fato.

O capitão Ronco Grosso foi um dos chefes da emboscada na Ladeira dos Caminhões Queimados, em Água Branca, onde morreram mais de cem da polícia, na Guerra da Perdição.

Ouvi Ronco – o Mané Lope (sic) – contar a confissão que fez ao padre quando meu Tio e seu Coronel recrutou a volante. Todos os cabras eram obrigados a se confessar antes de receber o fuzil. O padre absolvia, Ronco Grosso ia embora e voltava para contar outro pecado de que se lembrou. O padre se torcia no confessionário, até que ordenou a Ronco que não voltasse mais.

Ronco Grosso era da volante de Perdição, que travou combate com o bando de Virgolino e cegou um olho do cangaceiro com um tiro disparado contra um pé de quipá, onde o bandido se amoitara. O espinho vazou-lhe o olho. Está no livro da neta do facínora, “O espinho do quipá”.

Mas Vera Ferreira não tem o sortilégio de Aldo. Sortilégio herdado ao avô, que lhe possibilita recolher histórias narradas por contadores do Outro Mundo. Como fez em “O dia dos cachorros” e agora neste “A dançarina e o Coronel” – a ser lançado hoje, na Livraria do Luís, mais ou menos às nove ou dez da manhã (nas alturas).

Qualquer noite dessas a alma de Ronco Grosso vem do Outro Mundo e vai escrever essas e outras histórias no caderno do neto. Mais não vou dizer para não beliscar o fruto.

*Jornalista, escritor, poeta, ensaísta, publicitário e membro do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, da Academia Paraibana de Letras e da Academia de Letras e Artes do Nordeste.


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