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09
out
2014

Sitônio PintoOtávio Sitônio

O prêmio conquistado pelo romance “A Pedra do Reino”, do escritor Ariano Suassuna, em 1971, foi investido na criação de bodes no Cariri paraibano. Essa iniciativa fez nascer a moderna caprinocultura brasileira. Ariano se associou ao seu primo-irmão Manuelito Dantas Vilar, proprietário da fazenda Carnaúbas, seis quilômetros ao sul de Taperoá, para dar início a uma economia voltada à realidade geográfica do Semiárido.

Vosmecê já viu noticiários na tevê sobre a Seca no Nordeste. Viu carcaças de bois mortos pelo chão. Mas ainda não viu a imagem de um bode morto pela fome. Simplesmente eles não morrem de fome, pois são adaptados à vida nas regiões semidesérticas ou no deserto. A caprinocultura faz parte da solução apontada para a Seca no Nordeste, proposta pelo engenheiro Arrojado Lisboa, chefe da missão que o governo brasileiro enviou ao Semiárido no começo do século passado.

Numa conferência pronunciada na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, em 1902, Arrojado Lisboa resumiu em duas palavras a solução para o flagelo da Seca: “indústria compatível”. A caprinocultura se apresenta como a atividade econômica que mais se enquadra no conceito de “indústria compatível”, proposto por Arrojado Lisboa na sua memorável conferência. Os bodes são frugais, comem e bebem pouco, sobrevivem com as folhas secas e as cascas catadas nas mangas do semiárido. Praticamente são imunes à Seca, e transferem essa característica a quem os criar.

Essa foi a maior obra de Ariano Suassuna, feita a quatro mãos com seu primo Manuelito Dantas, catedrático de hidráulica, o sábio do Sertão. Os dois saíram na camioneta de Manuelito, Sertão adentro, procurando e selecionando cabras para sua experiência pioneira: cruzar espécimes adaptados secularmente ao caaclima com parentes europeus, já selecionados no meio milênio que sucedeu à invasão do Novo Mundo.

No Vale do Pajeú, sertão seco de Pernambuco, Ariano e Manuelito selecionaram cabras moxotós. Trata-se de uma cabra branca com uma lista preta no dorso, de vocação leiteira. Do Pajeú, ou Navio, foram para o Vale do Gurguéia, no Piauí, habitat de uma cabra similar à Moxotó, parda com a lista preta no lombo, de vocação voltada mais para a produção de carne, mas também leiteira. É a cabra gurguéia.

Essas duas raças de cabras foram cruzadas com reprodutores das raças brancas alpinas e pardas alpinas, ou brancas alemãs e pardas alemãs. Somaram a resistência adquirida em cinco séculos de Nordeste com a evolução que alcançaram na Europa. Era o reencontro de parentes da mesma raça, somando as características proporcionadas por climas diferentes.

Mas os primos não se deram por satisfeitos com o sucesso de sua criação. Identificaram no rebanho nordestino a presença de descendentes das cabras pretas murcianas, as cabras mais produtoras de leite em todo o mundo. As pretas murcianas produzem até cinco litros de leite no deserto espanhol da Múrcia. No Nordeste, suas descendentes são as pretas retintas: a cara de uma é a da outra. Pois as murcianas melhoraram as retintas quando cruzadas com essas, mantendo o mesmo padrão genético.

Os primos não deram sua obra por acabada. Resgataram no Cariri paraibano as cabras uriós, ou nambis, ou orelhas de onça, em tudo semelhantes às azuis pirenaicas e à raça la mancha, desenvolvida nos Estados Unidos. Sua pelagem tem a cor do “jeans”, as pernas curtas, as orelhas também, imunes aos espinhos. O corpo comprido e grosso, chibarro, apresenta bom peso.

O leite das nambis tem o menor odor hircino – um cheiro característico que dizem ser próprio do leite das cabras. Mas não é das cabras, é dos bodes, que marcam as fêmeas e seu território com seu almíscar. Separadas dos machos quando gestantes, as cabras não repassam para o leite o salutar cheiro de bode, que nunca senti.

Essas quatro raças de cabras – pardas, brancas, azuis e retintas – constituem a maior obra de Ariano Suassuna, feita em parceria com seu primo Manuelito, dois cabras da peste. A obra de Ariano/Manuelito viabiliza economicamente o Sertão com a prática de uma indústria compatível – como anunciou o profeta Arrojado, na sua profecia da Escola Politécnica. O Nordeste tem jeito.

*Jornalista, escritor, poeta, ensaísta, publicitário e membro do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, da Academia Paraibana de Letras e da Academia de Letras e Artes do Nordeste.


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