qua
25
fev
2015

“Quando soube que Hermosa era sobrinha do coronel Zepereira, Lampião matou o gado da menina para se vingar”

Otávio Sitônio

Hermosa sobreviveu à Guerra de 30, quando as tropas da Paraíba tentaram avançar contra Princesa. Tinha 18 anos. Naquele transe, as moças de Princesa recebiam treinamento militar. Minha mãe aprendeu a manejar o fuzil Mauser. Ainda não perguntei a Hermosa se recebeu treinamento de Mauser; provavelmente, sim. Quinta-feira passada, dia 19, ela fez 102 invernos e verões bem vividos.

A prima Hermosa e minha mãe eram sócias de costura. Misturavam o dinheiro que apuravam na máquina Singer. Estou escrevendo esta reportagem de memória, sem incomodar Hermosa com um telefonema. Ela não gosta do telefone, pois não escuta direito. Mas a audição é sua única limitação. Coisa de Pereiras, que perdem a oiça ainda cedo. No mais, está lúcida e saudável como sempre.

Naquele tempo as costureiras de Princesa ganharam um bom dinheiro fazendo os uniformes dos Libertadores. Era uma tropa de 1.800 homens. Princesa tinha exército, constituição, Diário Oficial e bandeira, que não chegou a ser desfraldada porque o doutor João Dantas eliminou o doutor João Pessoa. O doutor João Dantas foi o patrono do doutor João Pessoa na História, pois, se ele não tivesse matado o presidente paraibano, não teria havido o Golpe de 30, ao qual era contra, mas tornou possível com sua morte.

A bandeira de Princesa foi inspirada na bandeira do Brasil. O campo verde-portugal, um losango amarelo-áustria, uma esfera azul. No meio da esfera, um capucho de algodão, símbolo da economia do Território Livre. Princesa tinha várias usinas de algodão, inclusive a do seu deputado e coronel Zepereira, meu tio-avô, cujo locomóvel movia o gerador de energia elétrica da cidade.

Meu avô também tinha um locomóvel, que desfiava algodão e moía cana, na vila de Jericó, em Pernambuco, a seis quilômetros de Princesa. Meu avô João Sitônio, duas vezes cunhado do coronel Zepereira, era o dono do primeiro automóvel que chegou àquelas bandas, em 1918. Mandou abrir a estrada de Flores à Princesa para seu Ford chegar. Foi prefeito de Princesa, mas abriu a estrada com recursos próprios.

Naquele tempo era assim: tio Zepereira botou luz em Princesa com recursos próprios, fez a estátua de Epitácio Pessoa com recursos próprios, meu avô abriu a estrada com seus recursos.

A bandeira de Princesa foi projetada por Joaquim Belarmino, fotógrafo, instrumentista e compositor. Mas o doutor João Dantas precipitou-se e o meu tio-coronel deu a luta por encerrada. A bandeira foi cancelada. Ainda vou fazer uma. Bem que pode ser a bandeira do município.

Voltando à Hermosa: ela sobreviveu à Guerra de 30 e à Guerra de 38. Sexta-feira vai fazer 77 anos do fim da Guerra de 38, quando Lampião mais dez bandidos foram eliminados no Coito dos Angicos pela volante do tenente João Bezerra, no Sertão de Sergipe. Princesa engajara-se na luta contra o cangaço. A volante de Princesa cegou o olho de Lampião e matou seu irmão Levino no fogo do Tenório, Sertão de Flores, PE. É o que diz Vera Ferreira, neta do bandoleiro, no livro “O espinho do quipá” (Saraiva).

Quando soube que Hermosa era sobrinha do coronel Zepereira, Lampião matou o gado da menina para se vingar da surra de Flores. Era o começo de sua derrocada. No Fogo de Flores ele perdeu o olho direito (olho diretor do tiro) e um irmão. Essa história em contarei com maiores detalhes na próxima quinta-feira, véspera dos 77 anos do combate dos Angicos. A prima Hermosa sobreviveu ainda à Primeira e à Segunda Guerras Mundiais, à Guerra da Coréia e à Guerra do Vietnã. Princesa enviou quatro voluntários para a Força Expedicionária Brasileira. Não enviou mais porque o Exército recusou alistamento a meu tio Agilberto, que fora expulso do Glorioso por bravura. Era forte.

Zacarias Sitônio, esposo de Hermosa, era quem sabia dessas histórias. Tinha fé, pois foi tabelião e prefeito do município. Como eu já disse, estou escrevendo essas coisas de memória. Pois nunca imaginei que a verdade pudesse desaparecer. Um dia Zacarias subiu a Serra do Gavião, ao norte da Eternidade, e levou a verdade no livro da alma.

*Jornalista, escritor, poeta, ensaísta, publicitário e membro do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, da Academia Paraibana de Letras e da Academia de Letras e Artes do Nordeste.


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Uma resposta para “As guerras passam, Hermosa fica”

  1. Joseane disse:

    Histórias como essa têm que ser contadas,lembradas e eternizadas para que não se percam o orgulho e o respeito por nossas origens.Fico na espera por mais um capitulo!Grata por esse prazer em ter escritor como tal a nos lembrar do nosso eterno sertão Paraibano.

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