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09
abr
2015

“O caixãozinho era uma miniatura perfeita. Dentro, uma boneca de pano toda espetada de agulhas e alfinetes, como os bonecos do vodu”

Otávio Sitônio

O caixão era uma pequena joia de marcenaria, igual em tudo a um esquife de verdade. Só que era pintado de preto – o que lhe dava um aspecto mais soturno. Não media mais que 30 centímetros de comprimento por seis de largura, e uns quatro de altura. A tampa abria-se lateralmente, com dobradiças. Era a única diferença das urnas de verdade.

Não sei por que os caixões de defunto têm tampas parafusadas, hermeticamente fechadas. Seus passageiros não vão fugir. E se algum deles envivecer, acometido que estava de catalepsia, não terá como remover a tampa atarraxada por meia dúzia de possantes parafusos. Qual será o percentual de defuntos que envivecem durante os funerais, ou que são sepultados vivos? Fala-se de casos de ossadas encontradas emborcadas dentro dos caixões, como sinal aos vivos de que se apressaram em despachar o suposto falecido.

Na nossa cultura, é costume se enterrar os mortos ainda no dia de seu falecimento. Nos países do hemisfério norte se passam dias com os defuntos dentro de casa; dá tempo deles envivecerem, se for o caso. Mas, ao sul do Equador, os cadáveres têm pressa, ou seus donos. Penso nisso toda vez que vejo mãos diligentes arrochando os parafusos das tampas dos caixões nos minutos finais, quando o pranto eleva-se sustenido. Deviam demorar um pouco mais, e com as tampas soltas, presas só com dobradiças como o pequeno caixão de AK.

O caixãozinho era uma miniatura perfeita. Dentro, uma boneca de pano toda espetada de agulhas e alfinetes, como os bonecos do vodu. Ele disse que encontrara o caixão no jardim de um fulano rico. Essas coisas não se encontram em casa de pobre, pois os pobres não têm dinheiro para dar a quem ache. AK era um feiticeiro que trabalhava para a burguesia, desmanchando coisas feitas, bocas de sapo costuradas com o retrato ou o nome da pessoa.

– Pode pegar, pode pegar, já está neutralizado – dizia o bruxo diante da minha recusa em segurar o caixão e seu boneco estrepado. Ele dizia algumas coisas pertinentes:

– Tá aqui um homem em que relógio nenhum funcionou certo no pulso dele.

Realmente, nenhum relógio trabalhara certo no meu pulso, suíço que fosse, ou japonês: atrasava ou adiantava.

– Nunca passou um dedo de graxa no sapato.

Meus pés estavam debaixo da mesa; como o bruxo vira esse detalhe, na primeira vez que nos falávamos?

Essas e outras me fizeram procurá-lo quando vivi um transe existencial. E reencontrei seu pequenino caixão numa sessão de cura de um de seus clientes. Era um farmacêutico de renome na cidade, cuja mulher não encontrava cura para um mal-estar que a perseguia. Coisa feita. AK trabalhava em dupla com outro bruxo, que recebia o espírito de um compositor popular falecido. Eram secundados por um casal de feições lombrosianas

O médium esfregava velas nas mãos e as fixava paralelas na parede. Em pós, escrevia as intenções dos assistentes numa tira de papel e a colocava entre a vela e a parede, podes crer. Depois de horas de cantorias, ouviu-se uma pancada no fundo da sala: o pequeno caixão apareceu perto da megera assistente. O médium disse que fora buscá-lo no cemitério, com risco de vida. Dentro, uma boneca frechada de agulhas. A mulher do farmacêutico sentiu-se aliviada. A coisa fora desmanchada.

Nunca mais vi AK. Mais tarde vim saber que ele tinha um conluio com um pedreiro que plantava os caixõezinhos na parede das suítes das casas que fazia para pessoas abastadas. Eram clientes em potencial de AK. Ele se habilitava para desfazer as coisas feitas, e descascava o reboco da suíte na presença do dono da casa, de onde tirava o caixão com seu boneco agulhado. O aflito burguês sentia-se aliviado, inclusive do excesso de dinheiro no seu bolso cheio.

*Jornalista, escritor, poeta, ensaísta, publicitário e membro do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, da Academia Paraibana de Letras e da Academia de Letras e Artes do Nordeste.


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