ter
29
dez
2015

“Eu tinha pavor de abrir o livro sagrado; passava depressa por aquela página que trazia Abraão pronto para matar o filho”

OTÁVIO SITÔNIOOtávio Sitônio Pinto

Se Deus não tivesse sido assassinado, semana passada estaria completando dois mil e dezesseis anos. Entendo que Deus seja mais velho, como a figura que havia nas páginas do meu livro de História Sagrada. Um velho barbudo que resgatava Isaac das mãos de Abraão, este com uma peixeira de doze polegadas, amolada, pronto para sacrificar o filho, como Deus mandara só para experimentá-lo. No lugar do menino, Deus botou um cordeiro mais inocente ainda.

Como a Bíblia é bruta, como seus personagens são violentos e bárbaros. Eu tinha pavor de abrir o livro sagrado; passava depressa por aquela página que trazia Abraão pronto para matar o filho, não matou por um triz. Se Deus demorasse mais um pouco – como deu maçada para salvar a humanidade (e os bichos?) –, Isaac não teria contado a história, sagrada que seja. Eu também tinha medo de ver aquele homem apanhando mais de que eu, levando chibatadas e a cruz, a testa cheia de espinhos.

Difícil ver Simão de Cirene entre os que acudiam Jesus, que ajudavam a carregar sua cruz. Não me lembro de Verônica e do cireneu entre as figuras da História Sagrada. A mulher que enxugou o suor e o sangue que escorria da sua cara esbofeteada. Não devia estar me lembrando dessas coisas, na passagem de mais um aniversário do Menino Deus. Na semana que findou, Deus nasceu em Belém, numa estrebaria sem nenhum conforto, cercado por animais: o bode, o jumento, o boi.

Pelo menos era assim no presépio que as irmãs Ada e Sílvia armavam todos os anos. Um presépio lindo como nunca mais vi, nem o da Prefeitura na Lagoa. Deus nasceu no deserto, não havia patos nem marrecos à sua volta, só os bichos do Cariri: bodes, jegues, talvez bois. Aquela vaca era um corpo estranho no presépio das piedosas irmãs, armado na primeira casa da rua de minha infância. Uma vaca de barro, pintada de zarcão como os bichinhos da feira.

Mas aí os homens brutos, tanto como os soldados da História Sagrada, prenderam Deus, espancaram Deus, pregaram Deus na cruz como se ele fosse um bandido. Era assim que minha mãe me contava, revoltada. Pregar uma pessoa na cruz não é coisa que se faça nem com os bandidos, inda mais com um deus. Os homens não esperaram que Deus ficasse velho como o Deus da História Sagrada, para morrer de morte morrida. Mataram-no, pregado numa cruz entre ladrões.

Mas estávamos falando sobre o aniversário de Deus, que as pessoas comemoram todo fim de ano. Mais de dois mil anos é um bom tempo, é vida longa mesmo para os deuses. Mas o menino de Belém demorou a chegar. A humanidade sofreu muito até ele vir. E continuou a sofrer, mesmo depois de sua chegada. Os cristãos exterminaram muitos povos na América, do Alasca até o Sul. Nem a raça das montanhas escapou, nem as pedras dos Andes. Só sobrou Machu Pichu.

Por que os cristãos são tão violentos, tão brutos e cruéis? A América era um continente ocupado só pelo estoque racial amarelo. Acrescente os homens vermelhos do Norte e do Sul, das pradarias e montanhas da América. Os cristãos não gostavam de outras cores. Escravizaram os povos pretos da África para vir trabalhar nos algodoais, cafezais e minas da América. Como pagamento, chicote e tronco. “O escravo é o trabalhador sem direitos”, definiu Leroi Jones (O jazz e sua influência na cultura americana, Record). Sem direito sequer à família e à vida.

Mas o menino nasceu. Depois chegaram os reis para adorá-lo. Tinha até um rei negro, Baltazar. Eles não faltavam ao presépio da minha rua. Demorei um pouco a dizer a palavra, “presépio”. Não é nome para qualquer menino. Onde andarão seus semoventes? Seu dromedário tão manso? Dizem que é muito dócil, mais que o camelo. Todos os bichos do presépio eram mansos, até os reis. O bicho humano foi que chegou depois, com a espada de Herodes.

*Jornalista, escritor, poeta, ensaísta, publicitário e membro do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, da Academia Paraibana de Letras e da Academia de Letras e Artes do Nordeste.


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Uma resposta para “Aniversário de Deus”

  1. Eu disse:

    Este cidadão pode ter quantas qualificações for, mas se não tiver a graça de Deus não tem nada! Falar mal dos cristãos do passado (creio eu) sem que eles estejam aqui para se defender é no mínimo incoerente, para não falar “burrice”. E também as interpretações que ele tirou da Bíblia Sagrada pode-se comparar ao um ignorante que mal sabe o que falar. Meu recado: manda ele se converter à Cristo, ao Deus menino como ele mesmo fala para só depois ter alguma “privilégio” de citar o nome do Senhor…

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