sáb
11
abr
2015

“A burra de seu Dudu era muito extra, como aquela que Pedro I montou na sua viagem do Rio de Janeiro para Santos”

Otávio Sitônio

Tive um susto quando vi meu pai entrar na conferência. Ele nem me viu. Passou tão perto de mim, pelo corredor da esquerda do auditório. O andar quase apressado, com seu jeito de sempre, em mangas de camisa. O que o velho fora ver na conferência dos comunistas, organizada pelo Partido na Campanha das Diretas-Já? Ele caminhava determinado, como quem sabe para onde vai, e foi até a mesa, onde tomou lugar. Só então eu vi que não se tratava de meu pai.

O velho era a cara do meu avô. Um pouco mais baixo, alvo, mas os olhos eram apertados. Vovô tinha os olhos violetas como os de Elizabeth Taylor. Raríssimos, belíssimos como seu vernáculo, a pronúncia perfeita, sem sotaque algum, com os “eles” dobrados e revirados como um anzol no lugar dos “us” da sílaba final: Brasill, anill, fuzill, federall, estaduall, animall. Seu filho Zé Pinto foi professor de Português e editor de uma revista de charadas, mas não tinha uma pronúncia preciosa como a do velho Gratulino, uma pronúncia violeta.

Aí o sósia de papai tomou lugar à mesa, depois de uma salva generosa de palmas, e começou sua palestra numa voz simples, sem impostação, a fala firme e direta para todo mundo entender, comunistas e não comunistas:

– Vocês estão distraídos com essa história de eleições diretas. Tanto faz eleições diretas como indiretas. O importante é organizar o povo. Organizar o povo em sindicatos e associações dos mais diversos tipos. Associações das mais diversas classes, de operários, de estudantes, de mães, de donas de casa, de consumidores, de usuários de serviços. O importante é organizar o povo. Só o povo organizado terá força para defender seus direitos e a democracia.

Parecia Papai contando sua vida, de como fora de Triunfo, em Pernambuco, para Misericórdia, na Paraíba, distantes vinte e cinco léguas por dentro, numa cavalgada só. Fora e voltara, sem parar para comer e dormir. Ele era caixeiro e parente de seu Dudu, o major Carolino Campos, o homem mais rico do brejo de Triunfo e do vale do Pajeú. Duduzinho tinha um empório onde se vendia tudo; tinha torrefação de café, usina de algodão, engenho, alambique de aguardente etc. Mas Duduzinho precisava honrar um compromisso no dia seguinte e o dinheiro não estava completo.

– Eu vou buscar em Misericórdia, junto à parentela, e volto amanhã – disse Papai. A mãe de Dudu era de Misericórdia, assim como Papai. Misericórdia fica na beira do rio Piancó, na Depressão do Piranhas, e Triunfo é a cidade mais alta do Nordeste, a mais de mil metros, em cima da serra da Baixa Verde. São separadas uma da outra por vinte e cinco léguas de beiço, cerca de 150 km.

– Não dá tempo de você ir e voltar –, disse Dudu. Nenhum cavalo nem cavaleiro faz isso. – Eu faço –, retrucou meu pai. – Saio daqui na sua burra e vou trocando de animais pelo caminho.

O caixeiro de Duduzinho botou queijo e rapadura no bornal, encheu dois cantis de água, e passou a perna no animal. A burra de seu Dudu era muito extra, como aquela que Pedro I montou na sua viagem do Rio de Janeiro para Santos, parando no riacho do Ipiranga para dar o grito. O burro tem cascos mais duros que o cavalo, couro mais grosso, e mais fôlego para subir serra. E a passada firme nas escarpas. Corre menos, mas vai mais longe.

O cavaleiro de seu Dudu saiu manhã cedo de Triunfo e foi trocando de animais, sem parar para comer, num galope só, até Misericórdia, onde levantou o dinheiro. Milhou o burro e pegou as 25 léguas de volta, destrocando os animais. De noite chegou a Triunfo.

– Nunca um cavaleiro fez isso, nem os da Coluna; 300 km num dia! –, disse o major.

Essa história me vinha à mente enquanto ouvia o palestrante dizer que as Diretas eram inócuas, o importante era organizar o povo.

– Lembro-me de seu pai – disse Gonzaga, que dá notícia de todo mundo. – Branco, baixinho, os olhos apertados. Parecia com Prestes.

*Jornalista, escritor, poeta, ensaísta, publicitário e membro do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, da Academia Paraibana de Letras e da Academia de Letras e Artes do Nordeste.


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