“Os homens sábios usam as palavras para os seus próprios cálculos, e raciocinam com elas, mas elas são o dinheiro dos tolos”.

Thomas Hobbes (1588-1679), filósofo inglês, autor de Leviatã

ter
09
set
2014

“O Príncipe tinha na burra um palafrém de confiança, como a burra do Rei David, a burra da sagrada escritura”

Sitônio PintoOtávio Sitônio

Olho para o quadro de Pedro Américo, “O Grito do Ipiranga”, também conhecido como “Independência ou Morte”. Mas não vejo Chalaça, o Francisco Gomes da Silva, favorito de Pedro I. Também não conheci Chalaça; sou de Roberto Carlos para cá. Chalaça nasceu em Lisboa, aos 22 de setembro de 1791, onde morreu aos 30 de dezembro de 1852, aos 61 anos.

O favorito viveu grande parte desse tempo no Brasil, nos cabarés e nas altas rodas da Corte, pajeando o príncipe e depois imperador Pedro I. Este era sete anos mais novo que Chalaça e morreu 18 anos antes, aos 36 anos. Dom Pedro nasceu no mesmo dia que Papai, 12 de outubro, mas 106 anos antes. Dom Pedro e Dom Chalaça não foram do meu tempo. Meus cabarés foram outros: Irene, Berta, adjacências.

Chalaça não era um boêmio qualquer; são de sua lavra algumas passagens da Constituição do Império. Dominava vários idiomas, principalmente o Lácio e sua derradeira flor. Fez seminário no Reino, de onde saiu na fuga para o Brasil diante da invasão napoleônica. A partir daí, tornou-se íntimo de acontecimentos históricos, principalmente das alcovas do Brasil, e muito provavelmente deve figurar no “Grito do Ipiranga” de Pedro Américo. Será este cavaleiro montado no tordilho, à direita do Príncipe? Ou no castanho baio, agitando o chapéu, logo atrás de Pedro I? Ele era o favorito; tinha que estar por perto.

Vou ao dicionário e constato que chalaça quer dizer dito picante e graça no andar a cavalo. Então ele tinha que estar presente ao Grito do Ipiranga. O riacho quase não aparece na tela tão grande, 4,15 m X 7,6 m, pisoteado pela pata traseira direita do melado baio de canos pretos. Autores como Laurentino Gomes dão Chalaça presente. Testemunhas da cena disseram que o Príncipe estava com dor de barriga e que se limpou com a carta que recebeu do pai, aconselhando-o a dar o grito.

O fato é que a carta sumiu, não está em nenhum museu, mesmo melada. Dizem que Pedro não montava o alazão cacete que aparece no centro da tela, um pouco à esquerda. Alazão é cavalo do couro fino, pouco menos que o pampo, dizia meu avô fazendeiro e tropeiro, o folista Gratulino. Eu quis dizer tocador de fole; se não existe o termo, fica então criado, com minha autoridade de neto de um tocador. Em tempo: cacete é o cavalo de uma só cor, sem nenhum sinal. É temperamental. Não há pampos na tela. Está faltando a tropa que levava a matalotagem, mais o milho das alimárias e as bexigas d’água.

O Príncipe montava uma burra, dizem os antigos. Claro, pois o Príncipe entendia de cavalos, era criador da raça alter real, uma das origens das raças campolina e mangalarga, dois grandes cavalos de sela brasileiros. O Príncipe sabia que para descer e subir a Serra do Mar, e vencer as 70 léguas (ou mais) para chegar no Rio de Janeiro, uma burra era mais animal que um cavalo. Principalmente as fêmeas; digo burras às filhas do jumento com as éguas, as mus.

Os muares têm cascos mais altos e duros; o couro mais grosso e resistente a pisaduras; têm mais fôlego para subir ladeiras; mais segurança no andar; têm a coluna convexa, que lhe dá melhores condições de suportar peso; são mais resistentes às longas cavalgadas; comem qualquer capim; etc etc. O Príncipe tinha na burra um palafrém de confiança, como a burra do Rei David, a burra da sagrada escritura.

Solha, onde está Chalaça? Waldemar é pintor e meu revisor; deve saber quem é Chalaça, no meio desses dez xeleléus paisanos que acompanham o Príncipe. Ou será que o pintor Raul Córdula sabe? Raul, cadê Chalaça? Não será difícil de achar, só tem dez civis, os outros são cavalarianos, dragões da Independência. Leva um jeito de ser o bigodudo no tordilho, à direita do Príncipe. Se não é, tomaram o lugar dele. Diz-se que o Príncipe deu o brado às 16,30, hora de Brasília. Deve ter sido, pela sombra dos cavalos. Ah, Solha ripostou; Chalaça é o terceiro da esquerda para a direita, de cartola e lenço branco na mão.

Há quem diga que Pedro Américo plagiou “1807, Friedland”, de Ernest Meissonier, que retrata a vitória de Napoleão sobre os russos. Não é um plágio. Há semelhança na distribuição de volumes, mas as pinturas são diferentes. Só o pequeno grupo que cerca Napoleão lembra a dezena de xeleléus em torno de Dom Pedro. Napoleão está montado no seu indefectível tordilho árabe, que pensam que é branco. Mas no grupo falta Chalaça; Napoleão não tinha Chalaça.

*Jornalista, escritor, poeta, ensaísta, publicitário e membro do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, da Academia Paraibana de Letras e da Academia de Letras e Artes do Nordeste.


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